CONVERSAS PSICOLÓGICAS

Psicologia, indivíduo e sociedade

Raul Buchi logo fundo branco

Sempre amei histórias em quadrinho. Tenho certeza de que a presença constante dos HQ’s na minha vida, me ajudaram a ser uma pessoa com mais clareza e mais crítica sobre a vida. Comecei cedo, com a clássica Turma da Mônica e os Quadrinhos da Disney. Na pré-adolescência, no meio dos anos 80, conheci através dos meus pais, os quadrinhos mais críticos: chiclete com banana (do Angeli), piratas do tietê (da Laerte), o Geraldão (do Glauco).

Aliás, aprendi muita coisa com o Geraldão. Comentário desnecessário, mas ilustrativo.

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A Turma da Mônica e a Disney perderam um pouco o contexto nessa época e foram substituídos pela violência e a sensualidade dos HQ’s de super-heróis: Batman, homem aranha, Wolverine e o Justiceiro. O Batman e o Homem-Aranha eu leio até hoje. A tríade mágica Angeli, (a)Laerte e o Glauco (falecido e amado) me apresentaram o jornalismo como crítica e interpretação do mundo, o gosto por receber o jornal impresso em papel, no escritório (consultório) e atualizar-me!!! A então amada Folha de São Paulo.

Hoje não leio mais jornal impresso, só twitter. E não leio mais a Folha, leio os jornais da Suíça. Mas a Laerte preenche com crítica, ideologia, inteligência e engajamento todo o meu twitter. Sigo muito desenhista bom. Hoje, sigo muito artista e designer brasileiro que arrepia no traço, no conceito e na crítica. A Laerte continua uma fonte inesgotável de reflexãocom seus quadrinhos e com suas recomendações.

Por conta da Laerte sigo, também, muita gente engajada nas lutas de gênero (aliás, sugiro o filme sobre a Laerte no Netflix). Gente bacana, afiada, inteligente e guerreira. Gente tão rebelde e tão inconformada com o mundo que não se sujeita ao próprio gênero, e pelo tom e conteúdo das conversas, vão derrubar muralhas. Com razão.

Nasci no Brasil e nunca me identifiquei com o “ser brasileiro” (sou tímido, introspectivo, não sei dançar e não tenho “um jeitinho”, nem maleabilidade), sempre me senti um peixe fora d’água. Conheci a Suíça e encontrei meu lugar de pertencimento. Mudei-me e, apesar das dificuldades (a vida sempre é difícil, já dizia eu em outros posts), me sinto parte do mundo.

E, se eu posso mudar em direção ao meu contexto identitário, todo mundo pode. Deve!

Só não pode mudar o time de futebol. Paranista nasce colorado, vira paranista e morre sei lá o que!

A batalha das minorias LGBT+ não é algo que eu possa opinar com psicólogo. Não é minha área de especialidade, não tenho o recurso de linguagem técnica para escrever sem ferir pontos delicados e cruciais na batalha. Então, sem nenhuma ironia, não sei como aplicar os artigos, que termos se aplicam para cada grupo identitário dentro dessa sigla.

Assim, em vez de escrever sobre a minoria LGBT+, vou escrever sobre o outro lado. Vou escrever sobre a farsa da supremacia cis. Vou escrever sobre o conservadorismo hetero-normativo, infantil e punheteiro.

Sim, punheteiro. O Brasil é um dos países que mais produz e consome pornografia. O que você acha que a galera cis masculina tanto recebe em grupos de whats-up?

Pornografia: Fotos, GIF’s, vídeos. Pornografia.

Nada contra. Acho que na vivência da sexualidade, se está contratado e combinado, respeitando-se o contrato, vale tudo. Até uma festinha em direção ao ralo.

Dentro desse arcabouço da pornografia, o Brasil é o país que mais consome pornografia homo e transexual. Ou seja, o Brasil é o país que mais assiste pornografia com travestis.

Aliás, a minha conservadora Curitiba era, até pouco tempo atrás, a cidade com o maior número de prostitutas transexuais per-capita do país que mais consome pornográfica com travestis.

Lembrando-me das minhas aulas de sexualidade humana na faculdade, o grupo social que costuma ser cliente de travestis são homens casados. Em relatos trazidos pelas próprias profissionais na época, na maioria dos programas, elas eram ativas para os seus clientes passivos.

Enfim, como diz minha filha, hipocrisia.

A identificação com o gênero de origem biológica não é um privilégio. É uma coincidência entre uma sujeição cultural e um encaixe biológico. E essa coincidência fraca é chamada de gênero cis, ou cis gênero. A pessoa que se identifica com o gênero biológico. Alguém que sofre o processo de sujeição cultural e, coincidentemente, se encaixa nisso que é a fusão do gênero biológico com os critérios ou definições culturais de um determinado gênero.

A farsa cis tem graduações dentro de cada gênero. E sim, é uma farsa pois é uma convenção cultural e um contrato cultura assim como o dinheiro e a nacionalidade também são convenções.

Os traços biológicos do gênero são facilmente identificáveis em quase todas as espécies de mamíferos. Mas os critérios culturais e sociais ligados à formação da identidade de gênero são marcados muito fracamente e, quase que de forma exclusiva, no macho dominante (que tende a viver pouco). Os demais membros do grupo social (quando ele existe) acabam formando uma massa meio indistinta fora dos períodos de reprodução e de disputa de território.

Assim, no desenvolvimento individual, cada um de nós, dentro das possibilidades pessoais de sujeição, vai adquirindo traços de um ideal do que é “ser” ou “pertencer” a um determinado gênero biológico. Essa aquisição é um conjunto de comportamentos, é um repertório incorporado aos esquemas pessoais. Quanto mais dessa água conseguimos beber e ficar repetindo como um padrão, mais identificados vamos ficando com esse gênero. Vamos encaixando o cultural no biológico dentro do que nos é possível.

Para a uma maioria não esmagadora, esse encaixe é 60% eficaz. Para uma minoria, isso encaixa em 100%, identidade e corpo se encontram. Para os demais, as arestas são muitas, cutucam e machucam, identidade e corpo não se encontram.

Muitas vezes, é possível ter barba longa e usar um belo terno, mas ter uma vagina e ter atração sexual e amor homens, parindo um neném lindo. Muitas vezes, é possível que se tenham pernas bem torneadas e depiladas com vestidos florais e ainda assim ter um pênis avantajado e ter tesão por mulheres, mas apenas amar homens.

Esse atrito entre o corpo biológico e a sujeição cultural muito ocasionalmente forma um sujeito cis. Um sujeito plenamente identificado com sua sexualidade biologicamente atribuída. Mas, com 17 anos de psicologia, posso te garantir categoricamente que isso é um susto, uma raridade.

O primeiro ponto disso é que a tendência espontânea da sexualidade é a fluidez. Ou seja, mais do que ser hétero, bi ou homossexual, quando tiradas as barreiras culturais (preconceitos e medos) a sexualidade tende a fluir mais com a paixão do momento do que com uma força pré-moldada e estereotipada. Por isso, quando a área pré-frontal do cérebro, responsável pela moderação do comportamento social, bebe demais ou cheira demais, acaba deslizando de forma fluida entre atos sexuais.

Mas isso não é uma questão de gênero, é uma questão de prática sexual ou de sexualidade.

De toda forma, eficientemente, ilustra o quanto toda essa discussão é em função de um estado de repressão de determinados repertórios de comportamento e aquisição de outros. E, dentro do arcabouço que compreende o humano, o cis é o que tem o repertório mais curto, menos capacidade de fluidez. Como o repertório é mais curto, a habilidade social que é resultado da execução dos comportamentos existentes dentro deste repertório também são menores. Portanto, ele é menos hábil socialmente nesses aspectos. O ódio acaba sendo a ferramenta mais facilmente acessível no repertório.

Ele tende, com mais frequência, a ter menos empatia e menos capacidade de compreender a situação do outro. Assim, ele tende a ser mais “ista” do que os demais grupos. O cis gênero é estreito em seu repertório e em sua conduta. Em geral fruto de uma educação misógina, ele acaba inclusive enxergando outros tons de gênero, como, por exemplo, um homem macho-cho menos caricato, como imediatamente homossexual ou algo a ser evitado.

Então, não basta ser homem ou mulher (seja lá o que isso quer dizer), é preciso ser também hétero-convincente. É preciso mostrar para o outro ser humaninho que se é cis e convencê-lo disso. Além disso, é preciso perder uma parte da grande festa da vida. A comunhão é a grande festa da vida. Amar ao próximo como a si mesmo é a grande festa da vida.

O cis gênero aprende a se desidentificar do outro gênero e, frequentemente a odiá-lo e vê-lo como inferior, algo a se afastar. Para se ser “plenamente” macho, é preciso não ser nem um pouco mulher e vice-versa. Dessa forma, os laços formados pela empatia, fruto natural e espontâneo do convívio com o próximo, se perdem. Todas as pessoas que estão em graduações menos rígidas de sexualidade ou gênero estão fora da comunhão e dos espectros de acolhimento, troca e confraternização.

Por isso é possível para o cis espancar o filho homossexual ou transgênero até a morte. Há mais proximidade e identificação com o cachorro macho do que com o filho.

Agora pasme, uma formação tão forte de uma identificação cis é rara e só acontece para uma minoria da população. Em geral, pessoas que trazem uma forte ligação com religiões monoteístas dominantes, atividades militares ou simplesmente recalcados (reprimidos). A grande maioria das pessoas reconhecidas como cis não trazem esse repertório tão estreito e rígido no início da vida adulta, mas vão enrijecendo com o passar dos anos. A intolerância aumenta com a idade (sempre e para tudo, não tolero sertanejo!!!).

Mas, o ódio não está lá. Quem está lá, para uma maioria esmagadora da população cis, é a abstenção da responsabilidade pelo sentimento do outro. A empatia existe, mas a omissão e a ausência de engajamento vencem. A busca pela paz através da omissão.

Em contra partida, o ódio faz muito mais barulho do que a paz.

Dou um exemplo simples. Cortei cabelo por algum tempo com uma mulher transgênero (uma pessoa que nasceu no corpo biológico com genitais masculinos e se descobriu mulher no decorrer das possibilidades da vida). Ela trabalhou nesse salão muito frequentado no centro de Curitiba. Com certeza, muita gente passou por ali e viu do que se tratava e foi viver sua vida, e na paz, o silêncio impera. Muita gente cortou o cabelo com ela, mas na paz, o silêncio impera. Um dia, um cis gênero hétero convincente e cheio de ódio fez um barraco no salão e a profissional perdeu o emprego. Um odiador e seu barulho.

O número 1 representa a minoria em um grupo com mais de dois. 1 é cis gênero estreito e cheio de ódio, 1 tem o gênero ou a sexualidade em padrões diversos e 3 são CIS de boinhas meio fluídos do tipo: “nãoquerofalarsobreisso” (o famoso omisso que não sabia da câmara de gás). O 1 CIS cheio de ódio faz barulho e constrói a câmara de gás, 1 sofre o preconceito e 3 deixam o gás entrar na câmara.

É do cis que temos que falar e não das minorias LGBT+. É daqule que impede o exercício da vida alheia que devemos falar. Aqueles que estão em uma belíssima batalha por seu espaço social, seja ele qual for, devem ser apoiados. Aqueles que impedem o fluxo da vida devem ser re-educados.

Mas esse é um texto opniático. Inspirado pelo ano de 2020, o ano em que muita gente morreu por conta do ódio. Muita gente morreu pela incapacidade de um determinado grupo de controla o seu próprio impulso de ódio. 2020 está sendo o ano com o maior índices de crimes contra a mulher, contra os negros, contra as pessoas trans. 2020 está sendo o ano do ódio.

O remédio para o ódio é a educação.

Raul de Freitas Buchi