CONVERSAS PSICOLÓGICAS

Psicologia, indivíduo e sociedade

Sentado na minha poltrona do consultório, aprendi a nunca acreditar em covardia. Ouvi relatos de vida por 17 anos, de hora em hora, um novo relato de uma outra vida. Nunca, nesses 17 anos, conheci um covarde ou um fraco. Isso, tornou impossível, para mim, acreditar que a covardia ou a fraqueza existam. Mesmo aqueles que se auto proclamavam covardes, fracos, frouxos, eram absolutamente fortes, combativos e destemidos.

Não é difícil entender o meu ponto de vista. Mas, vamos por partes.

Cada vida precisa ser observada e avaliada individualmente. Ou seja, a dor de cada um deve ser entendida como a dor de cada um. Assim sendo, o crivo que mede uma pessoa, não serve para medir a outra. As pequenas variações genéticas e históricas que cada um de nós carrega são suficientemente grandes para que cada um precise ser entendido dentro de sua própria realidade.

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Assim sendo, diferentemente do que o Partido Comunista Soviético queria nos anos 60, precisamos aceitar que o subjetivo existe. Ou seja, cada um é cada um, não somos uma massa indistinta que pode ser gerenciada, avaliada, liderada como um punhado farinha em um grande pacote de farinha. Claro, se pensarmos em termos de terror e extermínio, aí podemos ser comunistas ou nazistas: desconsideramos o subjetivo e matamos quem é “indivíduo”.

Como o subjetivo existe e, através do Vygotsky, podemos explicá-lo como essa relação entre a variação genética individual e a história vivida por cada aventureiro, temos que, então, entender a percepção do medo (gerador da covardia), a percepção da potência e a percepção da capacidade de reação de forma individual e mutável para cada pessoa. Esse são os elementos constitutivos da coragem e da covardia no comportamento.

1 – A percepção de medo

A percepção do medo é responsável pela leitura do ambiente e o reconhecimento do tamanho dos perigos enfrentados. Uma breve história: uma paciente tinha dificuldades imensas de sair de casa. Ela pensava e fazia as métricas mentais sempre de forma catastrófica, então, pegar o elevador para descer ao térreo era um confronto direto com a morte, a mente literalmente previa (de forma errônea) que o elevador cairia e ela morreria com muita dor no fundo do poço.

Então, descer de elevador, era um ato de extrema coragem e de muito confronto pessoal para essa senhora, mesmo que trivial para o resto do pacote de farinha.

Por outro lado, um paciente que era policial, colocava-se excessivamente em risco na vida cotidiana. Andava com o carro sempre acima do limite de velocidade, reagia violentamente na resolução de problemas simples (banco, caixas, filas) e, no trabalho, costuma tomar a frente em confrontos armados, quase forma irresponsável. Ele havia passado por diversos confrontos armados, tiroteios e perseguições bastante violentas, por tanto, sua percepção de risco, como a senhorinha da história anterior, não era muito precisa. Quebrou as duas pernas fazendo paraquedismo.

Portanto, descer de elevador era um ato que passava desapercebido e de forma automática, para esse grão de farinha, a percepção de um inimigo temível era muito difícil de ser sentida.

2 – A percepção de potência

A percepção de potência é a leitura que fazemos de nossa própria capacidade construtiva. Literalmente o quanto percebemos a nossa força física ou capacidade de agir sobre o mundo, de lidar com as coisas da vida.

Essa percepção nos mostra o quanto podemos aguentar no combate, contra o que podemos lutar, o que somos capazes de enfrentar. Se percebemos que não somos fortes o suficiente, pequenos problemas podem ser gigantescos problemas, se achamos que podemos demais, chegamos ao esgotamento sem conseguir lidar até o fim com o confronto.

Diferentemente da senhorinha do elevador, aqui a leitura errada não é sobre o ambiente, mas sobre si mesmo. Uma pequena história ilustrativa: um senhor havia trabalhado a vida inteira como fiscal. Havia enfrentado fiscalizações na rua, confrontado contrabandistas, prendido caminhoneiros e lidado com advogados encrenqueiros. Sempre com boas maneiras e uma excelente política, havia, de forma assertiva, confrontado e tido sucesso em situações extremamente delicadas e em situações extremamente perigosas. Mas, era casado com uma senhora briguenta. Dona de casa com gênio forte, mas de índole maravilhosa, mãe dedicada e esposa poderosa.

O senhor tinha sempre a impressão de que não tinha foça, poder, potência para argumentar, negociar e discutir com a esposa. Acabava sempre assumindo uma posição passiva e submissa simplesmente porque achava que não conseguiria convencê-la a fazer, pensar, querer ou agir diferente. Sentia-se, percebia-se no casamento, muito abaixo de sua real potência de resolução sobre as coisas do mundo.

Outra história era do rapaz que apanhava na rua quase todo fim de semana. Ele tinha uma reação muito forte à ingestão de álcool e, com duas ou três garrafas de cerveja, se via com um super-herói. Como resultado disso, sentia-se mais forte e poderoso do que realmente era, sentia-se mais hábil do que realmente era. Acabava sempre comprando brigas mais intensas do que podia dar conta.

Verdade que ele parecia um boi, passava a semana na academia treinando para alcançar a força almejada, essa percepção do corpo musculoso, reforçava o pensamento distorcido gerado pelo álcool. Acabou parando no meu consultório depois de ter a mandíbula partida por um homem muito menor fisicamente.

Temos, até aqui, duas facetas da mesma moeda: na primeira, apercepção de medo, o tamanho que eu enxergo o monstro. Na segunda, a percepção de potência, o tamanho que eu me enxergo.

Como eu vejo o mundo? Como eu me vejo?

3 – A percepção da capacidade de reação

A percepção da capacidade de reação é ligada ao estado de choque. Quando nos deparamos com um problema, a primeira reação é sempre o choque. Na relação entre as duas percepções anteriores, fazemos o cálculo do tamanho do problema e da potência para resolvê-lo. Quando uma ou as duas variáveis sofrem distorções, a capacidade de reação também sofre distorção.

Essa percepção é fácil de ser entendida quando voltamos para os homens das cavernas: A cem metros de chegar na caverna, ainda na savana, o sujeito se vê de frente com o Leão. Como o cérebro vai perceber o tamanho do leão, a capacidade pessoal de lutar contra ele ou de correr os cem metros vão definir qual será a reação: lutar, correr ou entrar em choque.

Nos dias atuais, 10 mil anos longe das cavernas, o cérebro continua fazendo os mesmos cálculos. Chegou um boleto: o valor é alto? tenho dinheiro na conta? Pago? Ligo negociando? Deixo o boleto na gaveta para os deuses assumirem meu destino?

Sempre reforço nos meus blogs que a vida é difícil para todo mundo. Não existe almoço grátis e, mesmo o relógio precisa de bateria ou de corda. Então, de graça nem injeção na testa. Com isso, o que quero dizer é que a vida é, a cada segundo, um jogo de xadrez para o cérebro. Um constante e ininterrupto resolver de problemas e isso representa um estado de confronto constante.

Estamos o tempo todo sem interrupção sendo confrontados pela realidade. Precisamos, no mínimo, respirar a cada 2 ou 4 segundos. Isso implica na percepção de que há oxigênio no ar que puxamos e que há potência física (muscular) para fazer com que os pulmões se encham e se esvaziem. Resolvemos esse problema de 4 em 4 segundos de forma automática. Mas, ainda assim, resolvemos.

Então, avaliando cada indivíduo a partir desses 3 critérios, nunca encontrei um covarde, um fraco ou um frouxo. Todas as pessoas que conheci, tentavam confrontar seus monstros e inimigos com toda a sua força que achavam que tinham, reagindo ao mundo com tudo que achavam que poderiam dar. E, pasme, a vida nunca facilitava.

Depois da tempestade não vem a calmaria e sim a enchente. A sua vida não é mais difícil porque você passou por isso ou por aquilo, sua vida não é mais fácil porque você teve isso ou aquilo. A vida é, e simplesmente é, difícil para todos. Privilégios são atos políticos. Para 99% de nós, enxergar a realidade como ela é, enxergar a sim mesmo como se é e reagir prontamente com assertividade é tudo que podemos pedir.

Enxergar o elevador como ele é, enxergar a própria capacidade de resolver problemas como ela é e não deixar a vida para depois são a chave para uma manutenção confortável da vida frente a todas as dificuldades. Mas, as distorções nos processos de crenças sobre si e sobre o ambiente fazem com que trabalhemos muito além do necessário ou muito aquém do precisaríamos.

Meu pai sempre diz que, mesmo depois de adulto, continuamos olhando para o mundo como se ainda fossemos crianças. Assim, as pessoas a nossa volta e os problemas que precisamos resolver são vistos de forma infantilizada. Acabamos achando as coisas muito mais complicadas, perigosas e inatingíveis do realmente são. Por outro lado, também continuamos olhando para nós mesmos como se ainda fossemos crianças, assim, não enxergamos o quanto crescemos, o quanto aprendemos, o quanto desenvolvemos ao longo dos anos. Assim, não percebemos a nossa capacidade como adultos.

Enfim, continuamos lidando com o mundo como se fossemos as criancinhas frágeis da nossa infância e o mundo fosse recheado de monstros fantásticos. Avaliar-se nessa realidade é mais do que enfrentar o elevador ou o tiroteio, é mais do que dizer para a patroa o que se pensa. Avaliar-se é descobrir sua própria realidade dentro da realidade. Literalmente, encontrar-se no tabuleiro.

Desejo boa sorte para todos nós, que soltem os leões.

Raul de Freitas Buchi