CONVERSAS PSICOLÓGICAS

Psicologia, indivíduo e sociedade

A necessidade é a mãe da criação

Não é de hoje que se sabe que a necessidade é a mãe do poder e da capacidade construtiva. A distância entre o ter e o querer é muito grande e, o que faz ela tão grande, é exatamente a ausência da necessidade que nem sempre acompanha o querer. Na verdade, todo esse discurso sobre reinventar-se (como eu odeio esse termo), persistir, mentalizar… toda a base desses discursos do Coaching vem de um só ponto: fazer o cérebro entender como necessidade premente aquilo que é muitas vezes supérfluo.

Em nenhum mamífero a força maior, o ato heroico ou a grande superação vem em momentos de bonança.  Quando olhamos a vida dos mamíferos, vemos que a sua maior força, sua maior explosão é sempre conflagrada nos momentos de necessidade. Nos momentos de bonança, eles dormem e se espreguiçam ao sol. O ser humano não é diferente.

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Nós, os humanos, chamamos o momento de bonança de férias. Caçamos por cerca de 1 ano (necessidade), depois passamos um tempo dormindo até às 9 da manhã, de preferência em alguma praia com hotel “all inclusive”: bonança.

Só que, quando tudo está calmo, engrenado na rotina, salário em dia, trabalho organizado, quando o cotidiano, mesmo que não estando de férias, está satisfatório, o cérebro reconhece a bonança. Mas, dentro de nós humanos, mesmo na bonança existe a necessidade de se ir adiante. Cobramos de nós mesmos ter um peso mais adequado, um corpo mais sarado, meditar, rezar, comer mais em casa, sair para caminhar, fazer uma pós-graduação, tentar um novo emprego. Foda-se o que quer que seja que queiramos, nós cobramos e queremos mais.

Quando tudo está bem, a necessidade constante de desenvolvimento pessoal cria uma sensação de algo que falta, de incompletude. Surgem pensamentos que avaliam que mais coisas precisam ser feitas. Para algumas pessoas isso ativa o conjunto de comportamentos que o tornarão competitivo, começando assim uma briga, leal ou desleal por novos cargos. Para outras pessoas o foco passa a ser progresso pessoal interno (para a maioria de nós, na verdade), emagrecer, ser uma pessoa melhor, estudar mais, ter uma rotina mais saudável.

Só que, baseado na realidade confortável (confortável e gostoso, aliás, são coisas diferentes) que está sendo vivida, a mudança se torna difícil, morosa, teimosa. A pós-graduação fica chata, o TCC fica adiado, as leituras atrasadas, a academia vira um fardo de cobranças/faltas, a dieta um constante fracasso. Ou seja, reinventar-se sem que haja uma necessidade real e premente é muito difícil.

Se formos sair de uma linguagem de treinador e formos falar em uma linguagem da psicologia, diríamos que: sem que haja um sofrimento que motive, mudar é muito difícil.

Assim, ensinar o corpo, o cérebro de que há uma necessidade premente é uma boa ferramenta de mudança. Fazemos isso constantemente no condicionamento físico e treinamento esportivo. Vislumbramos o sofrimento da derrota, vislumbramos a alegria da vitória e, ponderando essa equação, encontramos a necessidade premente de mudança: mais treino.

Quando queremos motivar um paciente a tentar parar de beber ou usar drogas, também fazemos isso. Chamamos inclusive de “fase de ponderação”, uma das fases de pré-mudança. Conduzimos o paciente em uma reflexão: quanto prazer no presente versus quanto sofrimento no presente, quanto sofrimentos no futuro x quanto prazer no futuro, avaliando essas hipóteses na presença e na ausência da droga.

Mas, nesse caso, não avaliamos elementos materiais externos, mas sim, o bem-estar, as sensações físicas e emocionais. Avaliamos aquilo que é sensível, aquilo que é experimentável no corpo.

Colocando em termos esportivos, podemos dizer que, exercitar-se sempre produz prazer. As endorfinas ficam saltitando no corpo frente a qualquer exercício físico. Mas, competir e superar-se gera uma descarga de endorfinas incomparável. Assim, quando isso é experimentado uma ou duas vezes, o corpo passa a entender com mais clareza o interesse nessa sensação. Isso passa a ser uma necessidade.

Parece bobagem, mas isso explica muita coisa quando você passa a conviver com pessoas que treinam crossfit ou corridas de média distância e competem nos fins-de-semana. Essas pessoas ficam tão ligadas à experiência da superação e da atividade física que isso ocupa o todo da vida.

Pessoas muito competitivas no ambiente de trabalho passam pela mesma situação. O corpo aprende a relação entre dedicação e batalha e as promoções conquistadas, a atenção despertada no ambiente, e torna-se uma ferramenta para esse objetivo. A pessoa transforma o todo da sua vida na busca pela construção de uma carreira.

Outro grupo de pessoas que ficam presos nessa arapuca são os concurseiros. Programam horas de estudos diários com uma carga de leituras e simulados que é inalcançável. Mas, na medida em que os resultados nas provas dos concursos vão melhorando, mais o comportamento de estudar vai sendo reforçado e, por tanto, entendido pelo cérebro como premente.

Empresários vivem exclusivamente desse sistema. Vemos, inclusive em empresas familiares uma cena muito irritante para os funcionários: o empreendedor ou dono, fica mudando as regras de conduta ou de produção quase que de acordo com o humor. Isso reflete essa força interna que não permite socessegar no que funciona bem e traz a bonança.

O cérebro humano se desenvolveu a partir de um antecessor em comum com os chimpanzés e gorilas. Esse grupo que se diferenciou como homo qualquercoisa, foi responsável pelo desenvovimento de um tal de Homo Habilis, ou homem com habilidades. Do homo habilis para o homo sapiens foi um pulo. O que o habilis teve de grande diferencial foi o uso de ferramentas encontradas no ambiente a sua volta: um galho para tirar frutas da árvore, uma pedra para cortar a carne, pequenas soluções para os pequenos problemas daquela realidade.

O que o sapiens (nós) fazemos é desenvolver ferramentas mais sofisticadas para problemas mais complicados. Os problemas maiores continuam os mesmos: viver mais e viver melhor. Mas, o homo sapiens, pelo desenvolvimento da linguagem e da consequente construção do espaço cultural, acabou saindo do espaço natural (literalmente, extinguindo a natureza, que se restringe a pequenas reservas).

Como consequência, o cérebro precisou rapidamente se adaptar. Conseguiu aprender a ler e escrever, a falar e entender em menos de 1 milhão de anos. Mas, não conseguiu parar de caçar. Não conseguiu adaptar-se a mudança no padrão das necessidades e, no espaço cultural, a sobrevivência não depende mais do medo, mas sim da estratégia. Mas, o cérebro continua caçando, continua precisando ler o motivo da ação, do comportamento, como uma privação ou necessidade.

Assim, quando está “tudo bem”, quando as coisas estão confortáveis (mesmo que na miséria e com uma certa fome) ainda assim é difícil mudar. Para que a mudança venha, é preciso colocar o cérebro no modo “caça”. Usamos no Brasil a expressão “virar guerreiro”. É preciso esse estado de espírito combativo para gerar a energia e o foco necessários para a mudança.

Esse espírito combativo virá quase sempre frente as necessidades. Mas, quando tudo está bem e só há a vontade de avançar, então é preciso inspirar-se para mudar. É preciso tornar-se um crossfiteiro da vida: gritar consigo mesmo e exigir, gerando insegurança e medo, até conseguir se mover na direção da mudança necessária.

A vida cômoda gera uma cabeça acomodada, e eu, particularmente, adoro esse estado. Adoro a vida na varanda com um bom livro, um chá e o pôr do sol atrás do morro. Mas, para muitas pessoas, mesmo para as que tem essa possibilidade, esse privilégio, esse usufruto se tornam impossíveis por conta desse constante treinamento de ser guerreiro e combativo. Desligar-se dessa força potencial de avanço é um exercício difícil para a maioria de nós.

Quantos de nós não dizemos para nossos pais (incluo meu pai nessa lista) que “é hora de curtir a vida e aproveitar o que semeou e colheu.”? Meu pai sempre foi e é muito empreendedor, muito combativo. Ele entende caminhar na praia como um tempo para esfriar a cabeça e pensar em novos negócios!!!

Aquela sensação de necessidade, criada mentalmente para estimular o avanço, a mudança constate nos estados da vida, virou um ciclo interminável. Não há problema nisso se não houver sofrimento e infarte

Raul de Freitas Buchi