CONVERSAS PSICOLÓGICAS

Psicologia, indivíduo e sociedade

A solidão é um dos mais desesperadores sentimentos que um ser humano pode experimentar. Assim como a fome, a sede e impossibilidade de dormir, a solidão pode levar a um sofrimento tão profundo que beira ou induz à loucura.

Ela pode se manifestar pela ausência de figuras externas a si mesmo ou pela incapacidade interna de construir vínculos com as figuras externas existentes. Na primeira situação, comum na terceira idade, na velhice, quando os mortos superam em números aqueles que sobreviveram, a solidão tira do idoso seus contemporâneos e seus iguais (amigos, irmãos, primos, colegas, esposas, maridos, amantes…) deixando só aqueles que, apesar de amados, não contemplam as mesmas cumplicidades dos tempos vividos ou tem, em seus vínculos, lastros de responsabilidades (filhos, netos, sobrinhos…).

Disparadamente, a incapacidade de construir laços com as figuras externas é a maior fonte de solidão. Paranoias suaves, competitividade excessiva, autoestima baixa, medo da rejeição, medo da crítica e falta de dinheiro fazem com que nos afastemos das pessoas a nossa volta.

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Solitude

Sei que parece um contrassenso, principalmente quando toda a psicologia recomendando que “se aprenda viver bem consigo mesmo”, eu escrever um texto falando contra a solidão. Mas, existem muitas manifestações positivas da solidão. E, em muitos momentos, todos nós sentimos falta de estar sozinhos ou ficamos bem sozinhos. Nesse texto não falo dessa solidão positiva, desse exercício de se estar consigo mesmo, falo de não ter mais ninguém.

Não estou falando dessa solidão saudável, temporária.

Não falo da solitude.

Falo de uma solidão crônica, falo de ausência total de vínculos.

Algo que para a maioria de nós é inimaginável.

A solidão temporária

Alguns procuram parceiros, almas gêmeas e se sentem sozinhos. Outros, mudaram-se recentemente e ainda não tem novos amigos. Outros ainda, passaram um longo período afastado ou estão recém separados e precisam reconstruir vínculos antigos. Essas experiências representam períodos de solidão, mas não uma solidão crônica, inesgotável.

Boa parte do esforço da psicologia no século XX e XXI foi direcionar as expectativas dos indivíduos para si mesmos. Boa parte dos esforços intelectuais e técnicos da psicologia nos últimos 200 anos foi trazer o indivíduo para dentro de si, ensinando-o a viver melhor consigo mesmo sem depender do próximo para suas realizações ou felicidade.  Enfim, o esforço não era na direção de uma solidão feliz, mas na direção da requalificação dos vínculos, tirando deles o peso da dependência e das expectativas.

Assim, estar só, pode ser uma consequência dessa requalificação dos vínculos. Ela será uma solidão temporária até que novos vínculos mais saudáveis se formem. Não é uma solidão absoluta e inesgotável.

A solidão crônica

Encontrei, ao longo da jornada no consultório, várias jornadas de vida que, quando vieram para o consultório, estavam em um estado de solidão crônica e absoluta. Dividi essas solidões em três tipos:

1 – Solidão por velhice

A única que é derivada da saúde.

Vive-se hoje por muito tempo.

Mas nem todo mundo vive por muito tempo. Portanto, aqueles que alcançam seu 90 ou 100 anos de vida, muitas vezes, se vem absolutamente desprovidos de vínculos. Os vivos são os netos ou bisnetos. Os amigos, irmãos e outros contemporâneos com quem dividiram as cumplicidades da vida, com quem as experiências ricas da vida foram vividas, já não estão mais presentes.

Luto

É bem possível que essa solidão venha marcada ainda por uma infinidade de lutos e despedidas. Penso muito na minha avó, já citada outras vezes aqui no blog. A dona Lola, beira seus 95 anos. Agora, esquecida de quase tudo, ela não se lembra dos nomes e não reconhece as faces. Mas, sua memória afetiva, a memória daqueles que ela amou ao longo da vida, a faz chamar seus irmãos, pais e primos, num looping perpétuo de saudades dos que partiram e desconexão do presente.

Aqui, a solidão é inerente aos processos naturais da vida. Ela não está sendo castigada por ter tido um determinado tipo de vida. Portanto, a solidão da dona Lola, mesmo com a frequentes visitas dos parentes vivos (sobrinhos, filhos, netos e bisnetos) a solidão é praticamente inevitável e um resultado muito negativo para uma vida longa. Podemos imaginar facilmente a sensação de desamparo, de desvalor associados a esse resultado negativo de uma vida duradoura: não ter mais ninguém.

Perpetuidade

Esse estado de solidão é perpétuo, as pessoas amadas não retornarão de seus leitos de morte e, dada as difíceis condições de vida na velhice, dificilmente vínculos tão poderosos poderão ser construídos com novas pessoas. Não haverá novas experiências formadoras de vínculos de cumplicidade e companheirismo.

2 – O rico

Conheci muitas pessoas assim.

Pessoas que desde jovem engajaram-se no trabalho, na busca pela segurança financeira e riqueza. Na busca por formar um patrimônio que desse segurança essas pessoas foram adiando casamento, filhos, jantares, namoros e encontros.

Acabaram afastando-se daqueles que fizeram opções diferentes por perderem as vivências em comum. Não tiveram filhos no tempo da turma, não escolheram escolas para as crianças, não escolheram enfeites par o casamento, não tiveram o regramento da sazonalidade das férias escolares. O Afastamento é simplesmente falta de coisas em comum, falta de cumplicidade e companheirismo.

Então, de repente, aos 50 ou 60 anos de idade, ricos, seguros, saudáveis, estão completamente sozinhos e, nessa idade, incapazes de se flexibilizar o suficiente para dividir ou compartilhar. Sobram os funcionários da empresa, os solteiros do clube e os interesseiros.

Apesar da solidão da velhice ser absoluta, essa, me parecer mais doída. Sou um cara de família, um agregador crônico, adoro crianças, enteado, filha, sobrinho, esposa, mão, pai, todo mundo em casa ou passeando juntos. O efeito colateral de uma vida bem vivida pode ser a solidão.

Vínculos fracos

Mas nesse caso, a consequência óbvia das escolhas feitas pelo medo da desfortuna ou pela ambição financeira será a solidão. Vínculos fracos, feitos no bar não vencem a barreira da solidão, eles não trazem a sensação de acolhimento e pertencimento. Eles apenas trazem a distração da realidade desesperadora.

3 – O louco

O louco, o bêbado, o drogado, o complexado, o mendigo, o preso. Na verdade, as classes ou grupos excluídos ou excludentes da comunidade. Gente estranha que não se mistura ou não combina. Gente facilmente descriminável. Gente que, além da própria mãe, não consegue (por qualquer razão não voluntária) receber a proximidade dos outros.

Nerds e Geeks

Nasci em 1976, quando adolescente, gostava mais de Histórias em Quadrinhos do que deveria. Passeia a adolescência sendo uma figura estranha e de pouca aceitação entre os meus pares. Como também gostava de esportes, o skate e o surf acabaram me proporcionando espaços sociais e de confraternização.

Hoje isso não seria um problema. Meu grupo social de identificação (Nerds e geeks) organizaram-se e, eventos, lojas, redes sociais se formaram e permitiram a formação de um espeço de pertencimento. Mas apesar das dificuldades, as diferenças causadas por essa identidade social nunca foram suficientemente estranhas e rejeitadas socialmente para geral um estado de obtusidade.

Minorias sociais

Homossexuais, negros, estrangeiros, minorias em geral, que carregam em si a sanidade mental de seus indivíduos, sofrem ainda hoje da necessidade de integração no espaço social. Não falo de aceitação: “é… vocês podem ficar por aí”. Falo de integração: “venham jantar aqui em casa hoje”.

A formação de vínculos acolhedores, vínculos de pertencimento acaba sendo uma luta contra a rejeição social, uma luta pela integração social ao invés de um simples viver, amar e ser amado.

Sentir-se como parte do mundo que nos cerca é fazer parte dele, sentir-se membro integral dessa estrutura. Quando recebemos os rótulos cabíveis ao nosso papel nesse espaço comunitário, entendemos nosso local de pertencimento. No caso das minorias discriminadas, esse rótulo é um espaço de merda para ser ocupado. E o rótulo vem de estigma imposto pela comunidade ao redor baseado naquilo que a comunidade estigmatiza no indivíduo, aquilo que segundo o grupo, o torna diferente, menor, rejeitável, desprezível. A sociedade cruel, racista, fascista e covarde rotulará a diferença como repulsiva e dará a ela o lugar entre o inexistente e a chacota.

Ser a piada é a forma de integração.

A normalização

Sou um leitor de Deleuze e Foucault e detesto escrever sobre integração e minorias. Não consigo entender com, após Auschwitz, os coletivos sociais possam ter a rejeição da diferença como base da relação entre seus pares. Nessa sociedade cujo poder se manifesta pela normatização, pela formação de normas que determinam o espaço da normalidade, correr fora das normas é estar sozinho, sem espeço.

Mas as estruturas de poder que determinam as normas são como placas tectônicas em atrito, e os farelos deixados por esse atrito, aumentam o processo de fricção podendo promover a ruptura da estrutura. Assim, essas minorias, quando em luta por sua integração, forçam as macro estruturas a ceder espaço ou romper.

E, diferente do que pregam os conservadores (de direita e de esquerda), essa luta precisa ser travada. Esse confronto contra as macro estruturas normatizadoras deve ser travado sempre e insistentemente. Esse é o único remédio contra o fascismo e a covardia exercida pelo coletivo em relação ao indivíduo. Deve-se combater o absolutismo que rejeita a diferença até que se morra ou que se mate.

O confronto social

A questão e a justificativa para essa luta é que a determinação das normas é arbitrária em relação ao indivíduo. Nascer sem braços não é uma escolha pessoal. E pior, muitas dessas arbitrariedades nem são elementos diferenciadores ou prejudiciais em si, são puro preconceito e covardia, ser negro, ser pobre, ser gordo, ser mulher.

A loucura

Em algumas situações, principalmente quando a saúde mental está em xeque, a solidão é uma condição absolutamente intransponível. Alguns transtornos mentais dificultam muito a formação de vínculos, outros formam vínculos com finalidades e intuitos de manipulação (o que no fim gera o afastamento dos outros), outros ainda, acabam sozinhos porque os vínculos construídos de desfazem e a mãe/cuidadora morre e não há mais ninguém.

A vida não é fácil para ninguém, então, não estou aqui dizendo: coitadinha da pessoa com depressão”, ou “coitadinha da pessoa com espectro autista”, “coitadinho dos homossexuais”.  Os vínculos, já escrevi sobre isso em outros textos, são como uma baliza que nos dá uma aferição sobre o viver, nos dá referências do como e, muitas vezes, do porquê viver. A solidão crônica nos priva dessas referências, assim, aquilo que já causa estranheza social, acaba ficando mais afetado e, o comportamento doente acaba se acentuando.

Muitas vezes a patologia passa a ser o vínculo, gerando uma relação direta e pessoal entre o acometido e sua doença. “O meu TOC”, “a minha depressão”, “o meu alcoolismo” passam a ser a presença, a companhia, a amizade para a vida. Outros vínculos se desfizeram, seja por conta dos desdobramentos do transtorno mental ou pela jornada da vida, agora, no mar da solidão, o único vínculo remanescente é a doença.