CONVERSAS PSICOLÓGICAS

Psicologia, indivíduo e sociedade

Uma das discussões que mais me aflige nas mudanças políticas é o fim dos privilégios. Ela implica em uma mudanças sócio-cultural absolutamente profunda nas nossas personalidade e identidades. Não se trata de uma mudança em bolsas e financiamentos diversos, esses devem receber um direcionamento e um apoio psicossocial maior, para terem mais efetividade na transformação sócio educacional, trata-se sim de uma mudança na forma em que construímos nosso laços, nossos vínculos interpessoais.

Temos, em nossa brasilianidade, aquilo que o Buarque de Holanda (sociólogo e não cantor) chamou de compadrismo. O compadrismo seria uma relação que implica em uma diferença entre os próximos e os distantes, em nossas relações de vínculos. Por exemplo, tenho mais afinidades com os padinhos dos meus filhos, meus familiares e meus amigos de longa data do que com o novato no escritório.

As pessoas que ocupam um luga afetivo mais intenso na minha vida, são também mais próximos. Até aí, nenhum problema. O amor com amor se paga. Mas, em nossa brasilinianidade, que descende dessa ética árabe/lusitana, essa construção afetiva de importância tende a se estender para o espaço político (entenda-se política como o espaço da polis, espaço público), alterando assim a hierarquia de oportunidade entre os próximos a mim e os distantes, independente das qualificações adequadas que deveriam estar em jogo. Ao longo do nosso desenvolvimento ético independente de Portugal, transformamos isso, gradativamente em uma troca de favores e gentilezas, que nos permite intervir favores agora, para cobrá-los de nossos compadres no futuro.

Tornando, assim, aquele ao qual favorecemos inicialmente com nossas ações, em nosso obrigado, pois nos deve um favor. Daí o fato de usarmos a palavra “obrigado” quando recebemos algo. Pois, pela cultura que herdamos, no momento em que somos favorecidos, estamos em obrigação com o outro. Em outras línguas usa-se “gracias” (graças), thank (agradecido, agraciado) e assim por diante. Isso gera uma distorção grave no sistema de privilégios, pois, ao invés de usarmos uma avaliação do potencial direto do indivíduo, usamos critérios pouco competitivos e muito injustos, o afeto/divida.

Outra distorção de privilégios, também ligadas ao período imperial e que é simplesmente absurda: a noção de autoridade. A autoridade é concedida como um privilégio de função, ou seja, o deputado tem o privilégio, a autoridade de legislar. O juiz de julgar, o policial de policiar. É um privilégio de exercer a atividade para qual se foi designado e nada mais. Mas, essa noção trazida dos idos do coronelismo, nos remete a comportamentos autoritários que transcendem o espaço do exercício das tarefas para a quais se é autoridade. Então, policiais civis se veem no direito de entrar de graça no jogo de futebol.

Juízes se veem no direito de chamar afilhados para cargos comissionados. Políticos se veem autorizados a acochambrar a lei. Podemos enxergar isso também em disputas comerciais ou de classes. Determinados sindicatos tem seu custeio pago pelo governo. Determinadas indústrias, por acordos de favorecimento, pagam menos impostos. Determinados prestadores de serviço não pagam impostos.

São privilégios que geral são distorções legais na composição de impostos e no custo que deve ser dividido pelo corpo geral de taxas pagas pela comunidade. O mesmo vale para privilégios em termos de abonamentos recebidos, como salários, planos de saúde, e outros benefícios como aposentadorias. Claro que, não é preciso dizer que, quem tem um sindicato com o governo na manga, tem mais privilégios do que classe análogas que não tem o governo na mão. Aqueles que podem legislar em causa própria idem. Por exemplo: cargos público deveriam ser alcançados por concursos públicos, pois, teoricamente eles nivelam esse padrão de intermediação afetiva/obrigatória à capacidade de resolver os problemas dispostos nas provas.

Mas, quando criamos cargos públicos que não exigem concurso, tendemos a preenchê-los com pessoas escolhidas por nós, através de nossos critérios ou dívidas de campanha. Mas isso é mais profundo. Isso se estende a elementos muito menos importantes em termos financeiros, mas, muito mas importantes em termos do entendimento do quanto isso está enraizado em nossa cultura.

Gosto muito do exemplo do bar, balada ou restaurante. Amigos do dono tendem a ter privilégios na entrada, na consumação e até na conta e lugar para sentar. Mas, essa distorção gera um custo e, esse custo é necessariamente rateado entre aqueles que não tem privilégios.

Existem privilégios que, por serem contratos de construção do bem comum, fazem muito sentido. Alguns exemplos são a bolsa família, o pró-uni, o FIES e a meia passagem para estudantes. Fazem sentidos porque são privilégios que visam uma estratégia de investimento naqueles que tem fome, que não podem pagar seus estudos ou que precisam dos ônibus para estudar e crescer. Literalmente um investimento promissor do coletivo em indivíduos, visam o bem maior da comunidade no futuro.

Precisamos repensar, individualmente, como usamos os privilégios que recebemos. Desde nossa bolsa pró-uni, que muitas vezes levamos na maciota, até nosso cargo comissionado no serviço público antes de esperar que as coisas melhorem.

Raul de Freitas Buchi