CONVERSAS PSICOLÓGICAS

Psicologia, indivíduo e sociedade

Sentir- se diferente é uma coisa passível de acontecer ao longo da vida. Sentir-se rejeitado é algo passível de acontecer ao longo da vida. Sentir-se sozinho é algo passível de acontecer ao longo da vida. Mas, sentir-se permanentemente diferente, rejeitado e sozinho é sinal de que algo no seu conjunto de crenças sobre si e sobre o mundo não está funcionando bem.

Vivemos no meio social e dependemos grandemente dele. Aliás, dependemos quase absolutamente dele. Tentar viver fora do ambiente comunitário é uma loucura tão grande que temos até uma caricatura dessa pessoa: o ermitão.

Dependemos do ambiente social para nos fornecer diversos elementos básicos para a vida (como iodo, ferro e potássio), mas também para a manutenção do equilíbrio mental. Manter a mente equilibrada implica em fazer com que o cérebro perceba o balanço, o equilíbrio de seus processos cognitivos através da interação social.

Um exemplo simples disso, é perceber que se precisa estudar mais, quando se frequenta a aula na escola do amigo. Ou, perceber que é preciso falar mais baixo quando se frequenta a casa de um amigo. Assim como, se percebe que nem todos os lares são como o seu, quando se encontra esse contraste.

Ouvi uma vez de um paciente que ele só percebeu o quanto a mãe era louca aos 11 anos. Foi passar um fim de semana na casa de um amigo e viu que a mãe dele não gritava o tempo todo e nem batia com a cinta aleatoriamente. O contrate permitiu a percepção do mal funcionamento doméstico.

Esse contraste entre o eu e o mundo gera as referências que servirão de padrão para que o cérebro alcance o balanço, o equilíbrio. É como se o convívio social gerasse um prumo. É possível se perceber também o balanço emocional. Literalmente: “pra que tanta pressa”, “pra que tanta ambição”, “pra que tanta droga”, “pra que tanto medo”.

Mas, no oposto do isolamento, a imersão total gera também uma perda do balanço. As referências internas da identidade se dissolvem nas referências sociais e o indivíduo acaba ficando muito poroso ao ambiente, ao invés de viver muito em função de si, começa a viver muito em função dos outros.

Então, nem 8 nem 80.

O 8 ou o 80 mostram que as crenças nucleares estão buscando forma de reforçar e, possivelmente, formas de manter os comportamentos disfuncionais instalados. Como o usuário de drogas que vai morar na rua para não ser mais confrontado, para não ver mais o confronto (constraste). Como o pai agressivo e violento que, na tentativa de evitar as consequências sociais (contraste) isola a família da vizinhança e dos colegas.

O oposto também acontece, a mãe “desquitada” que passa a beber todos os dias com os amigos para resgatar o “tempo perdido” com as amigas. O pai que tem reunião de negócios todos os dias para não precisar retornar ao lar. O adolescente que some de casa na quinta e só retorna no domingo para estar com os amigos

Assim como não devemos viver para comer, nem viver sem comer. Na vida social, precisamos encontrar o ponto de equilíbrio entre o ambiente social (não estou falando de visitar os pais no domingo) e a solitude.

Esse processo é tão importante para a manutenção da vida que, nosso funcionamento cognitivo vem embutido com ferramentas para detectar aceitação e acolhimento. Literalmente um “medidor de amor e amparo”. Nosso cérebro é preparado para detectar se somos aceitos no ambiente social ou não e é programado para se sentir reforçado pelo ambiente, caso entenda que somos aceitos. Ele é programado para gostar de ser amado.

Mas, a percepção da aceitação e da rejeição pode variar de acordo com o desenvolvimento individual. Também, como no caso da alimentação, onde a percepção da intensidade de fome pode variar de acordo com a história pessoal, a percepção da necessidade de aprovação ou reprovação, de rejeição ou aceitação pode variar de acordo com a história pessoal.

Enfim, algumas pessoas têm a percepção de fome ou de aceitação mais sensível ou intensa do que outras. São carentes, são frágeis ou vulneráveis. Portanto, o ambiente social tem um efeito mais intenso sobre suas percepções e, assim, sobre suas emoções. Essas pessoas têm uma percepção não muito clara da realidade relacional e, por isso, distorcem, interpretam mal, ou não reconhecem claramente os sinais de aceitação ou rejeição (isso acontece com o transtorno mental da moda: o transtorno borderline).

É como se seus ponteirinhos de medição de aceitação e rejeição não estivessem marcando corretamente o que o ambiente oferece e o que a carência necessita. Nesse desencontro de ponteiros perceptivos, dois tipos de pessoas me surgem a mente: a com síndrome de rejeição (isso não existe como diagnóstico) e a eterna carente (também não é um diagnóstico).

A com síndrome de rejeição é aquela que, ao menor sinal (real e claro ou irreal e subjetivo) de rejeição, sente-se absolutamente rejeitada e malquista. Em geral, essa pessoa vai coletando sinais vindo das outras pessoas que, quando acumulados e devidamente interpretados, tem como resultado, a rejeição. Reforço que, o ambiente não está rejeitando. Reforço que os sinais precisam ser interpretados de uma determinada maneira.

Assim, quando a pessoa se sente rejeitada, alguns comportamentos estereotipados e disfuncionais entram em ação. Frequentemente, a provocação de discussões acerca do que as pessoas fizeram e fazem para que ela se sinta rejeitada. Pequenas vinganças, manipulações e conluios, comportamentos levemente paranoicos assumem o padrão de interação.

Enfim, a pessoa com síndrome de rejeição torna-se muito cara e dispendiosa emocionalmente. Acaba, na tentativa de controlar o ambiente, para que não se sinta rejeitada, se tornando chata, cobradora e cansativa. Bom, por fim, acaba realmente, em geral, sendo rejeitada. O ambiente, ou, as pessoas em seu ambiente estão vivendo suas vidas e, por uma falha em sua leitura de mundo, os sinais são mal interpretados, levando a uma conclusão errada e persecutória de rejeição.  Como resposta a essa leitura distorcida, ela converte suas relações em ringue para resolver conflitos que só estão em sua cabeça.

O ponteiro de medição do ambiente está marcando errado, a resposta ao ambiente é disfuncional.

A pessoa carente é similar. Mas, a medição não é do ambiente, é interna. Como se dentro da cabeça houvesse um tanque de armazenamento de amor e, o ponteiro que marca quanto amor tem lá dentro estivesse funcionando mal. A pessoa tem a sensação constante de não ser amada, de não ter atenção, de não ser ouvida ou respeitada.

Mas, de novo, ela olha o ambiente em volta e vê os outros sendo amados, os outros recebendo atenção e recebendo cuidados. Mas, não consegue perceber o que ela mesma recebe do mundo, nem o quanto recebe. Enquanto se sente carente, cobra isso do ambiente, parecendo chata, pidonha e mal-agradecida. Fazendo assim, com que o ambiente perca o interesse nela. E estando sempre insatisfeita e cercada por conflitos criados desnecessariamente.

É difícil. Não são doenças mentais e não exigem cuidados mais específicos e não necessitam de medicação, apesar desse comportamento estar presente em alguns transtornos e, assim, oferecer um grau de risco significativo para a vida. Mesmo assim, essas pessoas sofrem e fazem os outros sofrerem. Deve ser muito triste estar se sentindo constantemente desamado, seja em um caso ou no outro. Mas, é ainda mais difícil para quem não pode se afastar desses relacionamentos tão pesados. Pais, mães, avós, irmãos.

Em ambos os casos, os portadores dos ponteiros imprecisos acabam transformado o ambiente em favor de suas crenças, reforçando assim a visão distorcida que carregam. E, até que a crença seja questionada de forma transformadora, quanto mais ela é atacada, mais rígida se torna. Como a crença de um torcedor em seu time de futebol.

Então, cada vez que essas pessoas são abordadas por familiares ou amigos se sentem mais atacados e ameaçados. Mesmo que haja uma folga após as conversas, as crenças voltam a atuar de forma mais intensa após a pausa. Essa abordagem eu chamo de “abordagem pressionadora”. Ela que traz em si a frase “nós não aguentamos mais as suas loucuras, você precisa parar”, ou seja, “nós rejeitamos você”, “você conseguiu nos fazer reforçar as suas crenças”.

Uma abordagem transformadora vem acompanhada da frase “você sofre demais, você precisa mudar”, ou seja,“nós aceitamos você, mas ficamos preocupados por você sofrer tanto”. Ela pode trazer a liberdade necessária para uma experimentação mais eficaz do ambiente, fortalecendo os vínculos com crenças mais funcionais e, principalmente, extinguindo as reservas que podem ser mantidas e que sustentarão uma recaída.

Comumente essas pessoas procuram o alívio de seu sofrimento trocando seus grupos sociais. Mas, como já entram nos novos grupos com as reservas trazidas das vivências anteriores, acabam sendo malsucedidas em suas tentativas de alívio e mudança.

Uma vez pedi a uma paciente atormentada por uma gigantesca síndrome de rejeição que, através de um grupo do Facebook, marcasse para se reencontrar com um grupo de vôlei que havia frequentado na adolescência.

Nesse grupo ela havia sofrido problemas fortíssimos de rejeição, quase que uma total exclusão do grupo. O reencontro foi muito interessante como experiência de seu novo repertório de leitura social. O grupo não tinha registros, ninguém se lembrava de ter rejeitado a paciente, mas todos se lembravam de ela ser uma pessoa sempre fechada e reservada. Todos lembravam que ela uma jogadora regular, mas parecia não se sentir confortável nas confraternizações e nos momentos de interação antes e depois dos treinos.

Ela me disse em sessão coisas do tipo: “ninguém vinha falar comigo”, “ninguém me chamava”, “as pessoas não faziam questão da minha presença”. E de fato, preciso dizer algo para todos os meus leitores, e para mim mesmo, ninguém sabe de antemão o quanto somos interessantes. Ninguém se interessa por nós até que saiba o quanto somos interessantes. Precisamos cativar as pessoas, precisamos mostrar o quanto somos interessantes.

O ambiente social não é responsável por descobrir o quanto somos interessantes, queridos, inteligentes, cativantes, matemáticos, amáveis. O ambiente social, de antemão, só enxerga nosso cartão de visitas, através de um mar de preconcepções falsas ou verdadeiras. É papel de cada um cativar esse ambiente social, fazê-lo atrair-se por esse algo mais além da carinha bonita.

Romper essa barreira do cartão de visitas e mostrar ao mundo quem se é de fato exige coragem. Coragem é sinônimo de vulnerabilidade.

Assunto para uma outra postagem.

Raul de Freitas Buchi